terça-feira, 21 de julho de 2020

AS INVASÕES CIBERNÉTICAS E A DITADURA TECNOLÓGICA

Aldous Huxley e George Orwell haviam profetizado: eles vêm atrás de nós. Chegará um tempo no qual não teremos nenhuma privacidade. Este tempo chegou. Michel Foucault definiu esta realidade como um "panóptico", no qual todos somos vigiados. Na semana passada, eu e um amigo sofremos um ataque virtual, de pessoas mal intencionadas, em uma live sobre meu livro "O Brasil-nação como ideologia" (Rio de Janeiro: Autografia, 2020, 2ª edição). Passados alguns dias, resolvi não ficar calado. Não vou simplesmente aceitar a falta de respeito que sofremos.

O que faço da minha vida? Sou professor universitário. Eu estudo para compreender o mundo. Dedico todo o meu tempo para tentar construir um mundo melhor. Não tenho tempo para vigiar a vida alheia, como fizeram meus invasores. Fico me perguntando sobre a condição existencial destas pessoas. Sabemos o que está acontecendo no mundo e especialmente no Brasil. Está instalado o gabinete do ódio, cuja tarefa diária é construir uma versão totalmente distorcida de mundo e perseguir pessoas ditas de esquerda ou progressistas.

Independente destes rótulos, a proposta do meu livro é pensar o Brasil a partir de uma revisão de sua história. Para isso, precisamos sair das ilusões da conjuntura para compreender como chegamos até aqui. O projeto iluminista deu errado e o mundo está absorto em trevas. O que leva uma pessoa comum a se tornar uma peça descartável neste xadrez, invadindo lives de professores universitários?

Poderíamos culpar a desigualdade e dizer que são vítimas, pessoas sofrendo etc. Mas acho que é um pouco mais do que isso. A maldade humana pode ter a ver com diversas razões. Falta de atitude em querer viver melhor, por exemplo. Mas também pode significar falta de sentido na vida. Até quando vamos aceitar estes ataques, já corriqueiros? Já temos relatos do Brasil inteiro. Não vou deixar de fazer o que sempre fiz, pois este é o sentido da minha vida. Acho que as universidades precisam seriamente se posicionar, institucionalmente. Estamos sendo vítimas de uma guerra doentia montada por pessoas que sabem muito bem o que estão fazendo. Não dá para deixar passar em branco. 

Estamos vivendo sob uma ditadura tecnológica, e o principal problema é que já a naturalizamos. Ela transcende o problema grave do covid, que nos assola profundamente neste momento. Em minha tese de doutorado, publicada como livro sob o título "A nova sociedade mundial do trabalho: para além de centro e periferia?" (São Paulo: Annablume, 2014), estudei as profundas transformações do capitalismo global desde a década de 1970. Um dos aspectos centrais desta discussão é a transformação do capitalismo em uma "sociedade do conhecimento". 

André Gorz, um dos principais autores desta tese, definiu o problema com bastante propriedade: a principal força produtiva e estruturante das sociedades atuais é o conhecimento tecnológico, dominado por poucos. Este é colocado a serviço da elite global para construir uma nova forma de dominação. Sem a tecnologia utilizada pelo poder da classe dominante global não teríamos hoje o novo fenômeno da indignidade: a uberização do trabalho. O patrão é invisível, difícil de se caracterizar como tal e de se processar juridicamente, como temos visto em alguns casos já no Brasil. Cada qual que pague com seu próprio corpo e o covid-19 chega para levar a cabo o trabalho de abandono e matança coletiva. Os entregadores todos os dias na porta de nossas casas estão neste front de batalha, além das mulheres protagonistas de diversas profissões da saúde, expostas ao risco neste momento.

O poder profundo da tecnologia sobre nossas vidas chegou a seu ápice. Hoje somos vítimas de cinco ou seis empresas globais que têm acesso a todos os nossos dados e podem mapear em cinco minuto tudo sobre nossas vidas. Com isso, não são apenas as pessoas "de esquerda" ou "progressistas" que estão expostas. Todos nós estamos. A nova dominação político-tecnológica, que esconde o mercado dos ricos por trás dela, chegou ao limite de poder ilimitado que elege quem quiser. 

Para saber mais, sugiro o documentário "privacidade hackeada" (direção de Jeane Noujaim e Karim Amer, netflix, 2019). Nele é mostrada a ação da empresa Cambridge Analytica e como ela foi decisiva na eleição de Trump e no problema do Brexit na Europa. A mesma lógica foi aplicada na eleição de Jair Bolsonaro. Entretanto, a história possui linhas tortas e este momento pode passar logo. Há grandes chances de que Trump não se reeleja nos Estados Unidos. Ou seja, o sentido que parece estar tomando a história neste momento pode mudar ali na frente e pegar muita gente de surpresa.

Quanto aos soldados da guerra virtual, os generais não morrerão junto com eles. Esta é uma guerra apenas aparentemente coletiva, na qual as principais peças do Xadrez conseguem facilmente mobilizar pessoas com pouca auto-estima para brincar de bater continência a líderes que não estão nem ai para elas. Trágica existência. A leitura de um Olavo de Carvalho pode trazer algum conforto, pois no fundo oferece um reconhecimento fake para aqueles que encontraram pouco sentido na vida. Tudo pode ser relativizado: a cloroquina pode salvar dos efeitos do covid-19 e a terra pode não ser redonda. A única coisa que não se relativiza é a condição de soldado em uma gerra: nunca será reconhecido pelo seu mestre, seja ele quem for. 

Enquanto os soldados fazem o trabalho braçal de invadir lives, colocando sua inteligência gratuitamente em favor de uma guerra particular, de seus mestres, estes nunca se expõem no front de batalha. Estão escondidos em suas mansões provando vinhos e carnes que seus leais soldados jamais provarão. Isso poderia ser uma razão para a reflexão. Talvez ajudasse na busca por um sentido mais profundo na vida.  

domingo, 14 de junho de 2020

NÃO É HORA DE BAIXAR A GUARDA

Estamos em um momento horrível da pandemia e as projeções não são das melhores. A principal reflexão a se fazer agora é que não devemos baixar a guarda, ou seja, naturalizar a rotina e aos poucos procurarmos voltar a uma normalidade que não existe mais. Depois de várias semanas de pandemia, passamos a perceber as coisas de outra forma. Tudo tem seu lado bom, mesmo estes momentos difíceis. Percebi como a luz do sol, nesta época do ano, bate bonita em nosso quarto, como nunca antes. Podemos nos voltar a nós mesmos e tirar tempo para autoavaliações perdidas na velocidade da rotina, como era antes.

Mas o que fazer quando não se pode parar? Neste momento, os moto boys talvez sejam os principais objetos de análise, os mais simbólicos, sobre a realidade que nos assola, diante da qual precisamos nos adaptar a cada semana. Eles não podem parar, como mais da metade da sociedade brasileira não pode. As classes livres do trabalho indigno precisam entender seu privilégio e ficar em casa, sem ampliar o risco da contaminação.

Mas o que fazer quando se é escravo do trabalho indigno? É compreensível a crença na cloroquina e na definição de gripezinha, quando não se tem o tempo suficiente, na dura e indigna rotina, veloz como um moto boy, para se fazer profundas reflexões ou ler longos debates. Também não dá tempo de saber o que é OMS. A realidade fora da bolha das classes privilegiadas muitas vezes é imcompreensível para estas, mas não para as classes de risco.

Não é possível se preocupar com "não baixar a guarda", quando é preciso se resguardar dos males que precedem o coronavirus, que sempre estiveram lá e que não vão mudar com alguma vacina ou com discussões políticas vagas, mas com mudanças políticas de fato e políticas públicas em favor da dignidade das classes populares no Brasil.

As reaberturas, parciais ou não, realizadas Brasil afora neste exato momento, estão totalmente fora da realidade. Agora seria a hora de reforçar o lockdown no país inteiro. Este fato apenas deixa claro o que o capitalismo e a sociedade de risco realmente são: um sistema econômico e social que garante a segurança material e moral de suas classes privilegiadas com base na exposição ao risco permanente, material e moral, de suas classes populares. A realidade dos moto boys na verdade não mudou muito de uns tempos para cá. Apenas surgiu o risco da contaminação, que não precede seu risco existencial desde sempre. 

Não é preciso baixar a guarda: recado para as classes livres da indignidade. Não é possível levar a sério demais um risco sanitário, que não precede a fome, resposta advinda da realidade popular. O que fazer então? Em um plano analítico, não devemos baixar a guarda na busca por uma análise sensata do momento atual, o que não é facil, pois nossas emoções se alteram em uma rotina um tanto quanto imprevisível.

Nosso esforço político para o Brasil do futuro próximo, pós-pandemia ou talvez convivendo com ela mais do que gostaríamos deve formular uma política sistemática de resguardo da dignidade das classes populares. Para tanto, primeiro, é preciso recuperar e resguardar a própria política das patologias e dos virus que a assolam nestes tempos sombrios.

Vivemos agora um fenômeno de desmoralização e deslegitimação sistemática do campo político, portador de todos os holofotes e reduzido ao princípio da corrupção, enquanto o mercado financeiro é quem dá as verdadeiras cartas neste jogo. Precisamos resgatar e resguardar a política deste lamaçal, e o único caminho democraticamente desejável é o institucional. 

Há de se soerguer um candidato progressista no Brasil para a próxima eleição, que tenha mérito e dignidade para receber o voto da maioria dos brasileiros? Desejo que sim. Este, entretanto, precisará compreender alguns princípios básicos da política, ensinados pelo bom e velho Max Weber. 

Não é suficiente que este candidato ou candidata seja um bom moço ou moça. Também não basta ter um bom padrinho político, campeão em transferência de votos, mas que talvez agora não transfira tanto assim. Também não é tudo ser um grande intelectual, que compreenda o Brasil profundamente, ainda que isto possa ser de fundamental ajuda. 

Ainda assim será preciso compreender profundamente o carisma na política. Lula e Bolsonaro, cada qual a seu jeito, conseguiram prometer ao povo mais humilde o que eles mais precisam: eu vou resguardar vocês de todo o risco, alguém aqui é capaz de não baixar a guarda por vocês. 

Quando a política brasileira for resgatada por um novo político carismático, capaz de cumprir seu papel sem se restringir a fantoche do novo capital, teremos dado o primeiro passo para todo o resto: a elaboração sistemática de um projeto de nação que resguardará os seus mais humildes da patologia que precede o coronavirus: o espectro da indignidade. 

Dedico este texto a todas as amigas e amigos que desejem um debate de verdade, não reduzido às emoções e clichês impostos pelas ilusões da conjuntura. 

sábado, 4 de abril de 2020

CORONA VÍRUS, DESIGUALDADE E A SOCIEDADE GLOBAL DE RISCO


O momento atual nos obriga à reflexão. Não temos para onde fugir. O mundo está de joelhos diante de um desafio que não conhece bem e tenta mobilizar todos os esforços possíveis para enfrenta-lo. Precisamos recorrer a todas as ideias possíveis, todas ao nosso alcance, que somos capazes de reproduzir, de modo a enfrentar este grande mal que nos assola. O vírus coloca, em certo sentido, todos nós em pé de igualdade, democratiza o medo, nos deixa sem saída e sem saber bem o que pode acontecer em poucas semanas. As análises políticas muitas vezes são rasas, diante de um problema de natureza tão profunda, ainda que apontem algumas medidas práticas viáveis em curto prazo.

Um dos maiores pensadores da atualidade, o sociólogo alemão Ulrich Beck, desenvolveu nos anos de 1980 sua poderosa tese da sociedade de risco. Ela aponta alguns caminhos muito frutíferos para nossa reflexão neste exato momento. Para ele, a sociedade atual, situada no tempo da modernidade desde a década de 1970, pode ser definida como a “segunda modernidade”. Nesta fase, a principal característica do mundo identificada pelo autor é que a produção de riscos seria nosso grande problema, maior até mesmo do que a produção de desigualdades, tese esta que se tornou polêmica por questionar algumas das bases mais profundas da sociologia predominante em todo o século XX. O significado desta tese é profundo e se mostra agora com a pandemia do corona vírus. Posteriormente, Ulrich Beck desenvolveu e sofisticou sua tese, ampliando-a para a compreensão de que vivemos agora em uma sociedade global de risco, na qual alguns riscos transcendem os limites das sociedades nacionais e até mesmo das desigualdades de classe. Não é outra coisa o que o vírus agora nos ensina. Ninguém está livre do risco e é urgente que levemos este recado bem a sério.

Em seu último livro, “A metamorfose do mundo” (Editora Zahar, 2016), ainda pouco conhecido no Brasil, Ulrich Beck avançou com aspectos essenciais de sua tese. Nele, ele chama a atenção para o fato de que a ciência procura muito mais compreender a distribuição e a não distribuição de bens do que de males. Agora se torna fundamental que compreendamos a distribuição global de males e como ela pode nos afetar de maneira geral, mas também diferencialmente. Assim, Ulrich Beck está consciente de que a distribuição de males, na sociedade global de risco, também é uma forma, talvez a mais profunda, de desigualdade. Com isso, a realidade atual é que temos territórios mais vulneráveis do que outros, nações mais vulneráveis do que outras e, o que deveria ser óbvio, classes sociais mais vulneráveis do que outras.

Os crimes cometidos em Mariana e Brumadinho, chamados metaforicamente de tragédias ou desastres, são uma grande evidência da irresponsabilidade e da loucura que rege agora um novo capitalismo sem nenhum limite institucional e moral, sendo este novo capitalismo a base econômica insana da sociedade global de risco. Estes crimes também são uma prova viva da seletividade territorial e social dos riscos. Várias matérias na grande mídia brasileira, na época, mostraram que a empresa responsável pelo crime em Brumadinho sabia exatamente da dimensão do risco e até quantas pessoas iam morrer, algo que passou batido aos nossos olhos, o dia inteiro ocupados com a novela da política.

Outro aspecto essencial do último livro de Ulrich Beck tem a ver com o poder e com o que ele está definindo como “política da invisibilidade”. Com este conceito, ele procura compreender a nova forma de poder predominante na sociedade global de risco, que para ele se resume ao poder de definição do que é risco hoje. De modo simples, o que o autor quer dizer é que nós desconhecemos, enquanto sociedade global, boa parte dos riscos que nos ameaçam e como eles podem realmente nos afetar. No caso do corona vírus, algumas pesquisas sobre vacinas para seu combate já foram publicadas, mas as previsões para a utilização das mesmas e a superação de fato do problema ainda são tímidas.

Indo além, Ulrich Beck procura definir o que seriam hoje “classe de RISCO” e “CLASSE de risco”. O primeiro conceito procura dar conta da diversidade de riscos que nos assolam, para além da nossa vontade e controle (ambientais, virais, políticos). O segundo conceito procura enfatizar a nova forma como as classes sociais podem hoje ser pensadas, ou seja, como classes de risco. Com isso, precisamos enfrentar dois problemas hoje, no Brasil e no mundo: encontrar as melhores formas de se defender do corona vírus e compreender como ele afeta diferencialmente as classes sociais. O primeiro problema tem sido enfrentado a partir da compreensão de que a vida se torna o bem maior a ser preservado. Deveríamos saber sempre disso, mas parece que só agora, quando o mundo se depara com um risco de características inéditas, somos postos diante do espelho que mostra à humanidade como ela é pequena e limitada. Agora a grandeza se resume em assumir a nossa pequenez e tentar agir a partir dela.

Quanto ao primeiro problema, parte da humanidade parece estar se saindo bem, na medida do possível, mesmo apesar de comportamentos distoantes e de intencionalidade suspeita como o do não-presidente da república do Brasil. As forças de ordem maior tender a predominar nesta hora. Não é a primeira vez que a humanidade se depara com tamanho desafio e é possível que fiquemos bem em breve. Em momento de tamanha dificuldade, inédito em sua história recente, a humanidade pode vislumbrar a expectativa de algo maior logo adiante, quando a ciência parece não oferecer todas as respostas.

Quanto ao segundo problema, que diz respeito à forma diferencial como o vírus afeta neste momento e vai afetar ainda mais as classes sociais, precisamos ter sensibilidade. Como pessoas, esta é uma chance para profunda reflexão e para ação. Neste exato momento, as classes médias e altas podem se dar ao luxo de ficar em casa, fazer sua quarentena de boa, ler um livro, colocar alguns assuntos em dia e até mesmo fazer uma reflexão como esta que aqui se apresenta. Não é a realidade das classes populares, e isso deveria ser óbvio, mas não é. Mais da metade da população brasileira se encontra neste exato momento em uma situação de completa vulnerabilidade, sem a certeza de que terá, nos próximos meses, o mínimo para sua sobrevivência.

A atual discussão da renda básica universal e as medidas de implantação da mesma, que surgem agora, enfrentam parcialmente o problema, mas não essencialmente. Um real enfrentamento precisaria repensar as bases profundas de reprodução do capitalismo, como uma ordem global incontornável que nunca produziu justiça social. A quantidade de evidências sobre este fato já é mais do que suficiente, já basta. Quando o Welfare State fracassou nos Estados Unidos e na Europa ficou claro que o capitalismo é um sistema que jamais produzirá justiça social por si mesmo. O verdadeiro enfrentamento da desigualdade, para além da renda básica universal, o que pode ser por si mesmo um bom início, deveria incluir a taxação das grandes riquezas e uma sensibilização por parte das elites na condução do mercado.

Quem está por trás das ações patéticas do não-presidente da república? Como é possível não se sensibilizar com pelo menos metade da população vivendo abaixo de qualquer linha imaginável de dignidade? São questões que exigem respostas de imediato, e o corona vírus aprofunda tais questões. Algumas ações de ajuda social e boa vontade já são vistas emanando da própria sociedade, que apresenta com isso seu lado mais sensível e solidário. São ações louváveis, mas não suficientes. O sistema político e as elites econômicas precisam reagir de maneira sensível e responsável, levar a sério o slogam que sempre evocaram para si, o de conduzir os rumos da humanidade. É muito fácil para a classe empresarial arrogar para si a condição de condutora da sociedade, como tem surgido em pesquisa atual que estou realizando com executivos, ao dizer que gera empregos.

Agora, como nunca antes, a questão não é gerar e manter empregos ou obrigar as pessoas a trabalhar. A questão é como enfrentar o problema da desigualdade, sempre existente, com sua intensificação pelo corona vírus, neste exato momento. Um caminho seria uma atitude mais consciente e sensível por parte da classe empresarial, em todos os níveis, mas principalmente nos andares de cima. Um dos pilares da reforma trabalhista foi exatamente deixar nas mãos “das partes”, empregadores e empregados, a possibilidade legal de negociar o que fazer sobre salários e tempo de trabalho. Vamos ser sensíveis neste momento e aliviar para o lado do trabalhador, adotando medidas de tolerância e de proteção social nos próximos meses, sem simplesmente colocar isso na conta do Estado? Isso seria ser “responsável” pela sociedade, ou seja, que a elite usasse os recursos que tem para proteger os vulneráveis. Mas não é o caso. Presenciamos exatamente o contrário. Vamos mexer no caixa da empresa, como se fosse um investimento, e pensar em um salário para proteger o trabalhador nos próximos meses, ou seja, fazer um investimento no próprio capital humano que será necessário ali na frente? Não, longe disso, vamos por na conta do Estado. Nesta hora predominam o medo e a pequenez humana.

Esta atitude idealista não vai acontecer por que o capitalismo global, há 40 anos, vem construindo uma economia política de “generalização da precariedade”. No plano da vida moral, trata-se de um processo de “institucionalização da indignidade” das condições de trabalho e das relações entre as classes. O fato de não ter um trabalho e de não poder trabalhar, o que se complexifica com o corona vírus, é por si mesmo indigno, ameaçando a capacidade de milhões de pessoas de proverem por si mesmas, para si e suas famílias, o mínimo para sua dignidade. Como dignidade das classes populares, compreendo a possibilidade de ter o mínimo para preservar a vida material e a vida moral. Por outro lado, as elites e as classes médias não podem ser dignas se não agem efetivamente para combater a indignidade dos mais carentes. Recursos financeiros para o enfrentamento do problema existem, precisariam ser utilizados com um pouco mais de humanidade. Um pouquinho mais já seria um bom começo.