Faz tempo que venho pensando
em escrever um texto sobre a situação brasileira atual. Tenho me perguntado o
que há realmente de novo na novela que temos presenciado. Somos bombardeados
cotidianamente por uma quantidade de informações, verdadeiras e falsas, que mal
damos conta de ler. Estamos acelerados, como muito bem analisou o sociólogo alemão
Hartmut Rosa. A dinâmica do Whats App, nos sufoca todos os dias com uma série
de informações que mal damos conta de absorver. Desnecessário dizer que, assim
como muitos de nós, já abandonei a leitura de alguns canais da mídia oficial
faz tempo. Desde o episódio inicial da novela envolvendo Joesley Batista e
Michel Temer, tomei um nojo profundo e irreversível do jornal o Globo. Dizer
isso não é muita novidade, mas pelo menos me permite compartilhar um sentimento
que tenho certeza ser de muitos.
Tudo isso é um sintoma de
que devemos ser cada vez mais seletivos. Existe hoje uma meia dúzia de revistas
e blogs de esquerda que ainda merecem ser lidos. Articulado a isso, devemos ter
cautela com uma distorção sistemática da realidade que se opera neste exato momento
de forma muito sutil. Alguns escritos da escola de Frankfurt sobre a indústria
cultural nos ensinam a compreender como este mecanismo funciona. A mídia
oficial trata de todos os temas importantes da realidade de forma
pseudo-crítica. Ela cria uma estética banalizante, grotesca e caricatural das
questões que realmente importam. Seus executivos não dormem. Isso não é
especificidade do Brasil. A bela análise de Adorno e Horkheimer sobre a
indústria cultural e a sociedade de massas estão em consonância com a análise
de Wright Mills, em seu grandioso livro “A elite do poder”, escrito nos anos
50.
Nesta obra magnífica,
esquecida entre nós, Mills também analisa, brilhantemente, o fenômeno da
sociedade de massas, sem o qual não se compreende o poder ilimitado alcançado
pela elite no capitalismo americano, símbolo do que viria a ser o paradigma da
realidade capitalista em todo o mundo pós-segunda guerra mundial. Para ele, o
poder, o prestígio e o status ilimitado da elite americana, que naquele momento
se encontra ocupando os mais altos postos institucionais do Estado, do mercado
e da esfera militar, algo de dimensões inéditas na história, só se explica pela
desconexão total entre a vida isolada desta elite e a vida comum das classes
populares. Esta desconexão completa entre dois mundos sociais totalmente
distintos, ou seja, a realidade das “altas rodas” das elites, escondidas em
seus restritos milieus sociais, e a vida comum da massa, possui para o autor
uma série de razões. A classe média, enquanto isso, vive no meio destes dois
mundos, horrorizada pela possibilidade de ficar presa na parte de baixo desta
sociedade do tipo “Titanic social”, ao mesmo tempo em que sofre
sistematicamente o desprezo da elite, que nunca a aceita em seus círculos
restritos. A análise desta tragédia existencial da classe média foi
magistralmente analisada por Mills em seu livro anterior, não menos instigante,
o White Collar (em português, “A nova classe média”), no qual percebe a
ambivalência sociológica e psicológica (como diria Robert Merton) de uma classe
média que emerge principalmente pela instrução formal.
O nó da questão, para Mills,
nestes seus dois grandes livros, não é meramente descrever o fato empírico do
surgimento de uma nova estratificação social nos Estados Unidos. O que está em
jogo aqui é o surgimento de uma nova sociedade que possui uma cultura
específica, resumida nos termos do autor como sendo forjada a partir de uma
“psicologia social das elites”. Para ele, as elites não possuem apenas
interesses políticos e econômicos em comum, mas também, e isso parece o mais
importante de tudo, uma afinidade afetiva e psicológica. Este tema, inclusive,
preocupou todos os grandes sociólogos e escolas sociológicas da geração de
Mills. Basta dar uma olhada rápida nas principais obras e autores das Escolas
de Frankfurt e Chicago, bem como do funcionalismo estrutural. Apenas Mills,
entretanto, colocou o tema em termos claros e incisivos em relação às classes
sociais. A grande sacada do autor, nesta direção, foi perceber que a unidade
afetiva das elites faz com que seus membros se percebam e atuem como parceiros
impessoais na tarefa, auto-atribuída, de dominação e condução do mundo. Não é
outra coisa que se confirma, por exemplo, lendo a biografia de um Marcelo
Odebrecht.
A principal lição que
extraímos destes dois livros de Mills é a seguinte: a cultura capitalista
construiu a sua própria narrativa de mundo, prometendo a todas as pessoas um
horizonte e um destino a se perseguir. O fio condutor dos dois livros é que a
busca incessante, vazia existencialmente e insana por poder, prestígio e status
se constitui como a grande meta moral da vida capitalista, incorporada e
exemplificada principalmente por suas elites e imitada de perto pela classe
média. Um aspecto decisivo desta análise se encontra no fato de que o mundo das
celebridades, ao qual Mills dedica um dos capítulos mais impressionantes de seu
“Elite do poder”, exerce a função sistemática na mídia de parecer ser o mundo
dos ricos, enquanto o verdadeiro mundo destes, no qual todas as decisões que
influenciam na vida de milhões de pessoas são tomadas, nunca é apresentado de
fato ao grande público. Qualquer semelhança com a rede Globo e com a estética
da Netflix, mundialmente difundida, não é mera coincidência.
Por fim, Wright Mills
encerra este grandioso livro com uma análise da “alta imoralidade” que corrompe
todos os círculos das altas rodas, nos conduzindo a uma leitura sobre os
Estados Unidos dos anos 50 que mais parece o Brasil em 2018. Nesta, deixa claro
que a corrupção não é peculiaridade da cultura dos países latino-americanos,
mas sim um traço inerente de toda a
cultura capitalista, a começar pelos Estados Unidos, que naquele momento se
apresenta como vanguarda desta cultura universal. A alta imoralidade das
elites, neste sentido, significa a predominância de um espírito iletrado e a
dominação de homens cuja motivação única é a busca pelo poder e pelo dinheiro.
Qualquer semelhança com o Brasil atual não é mera coincidência, nem
especificidade nossa.
No Brasil, Jessé Souza vem
realizando com muita propriedade uma análise semelhante, tanto sobre a
imoralidade de nossas elites quanto sobre a submissão interesseira da classe
média, articulada à primeira, considerando, entretanto, as especificidades do
Brasil atual, diante deste cenário maior da cultura capitalista. Não por acaso,
seu atual livro “A elite do atraso” já é um best-seller, por razões evidentes.
Neste, Souza identifica com maestria a origem de nossa elite de rapina na
cultura da escravidão, aquela mesma que Joaquim Nabuco em seu tempo descreveu
como a principal marca da alma brasileira, antecipando várias teses de Gilberto
Freyre, cinquenta anos antes da publicação de Casa Grande & Senzala. Desde
seu premiado livro anterior, “A radiografia do golpe”, Souza tem mostrado com
precisão como um grande acordo de nossas elites, incluindo o mercado, o Estado
a mídia e o judiciário deu o tom para a constituição da crise brasileira atual,
posta na conta do PT. Em seu livro atual, ele vai além e procura mostrar como a
nossa elite do atraso possui uma lógica própria pelo menos desde a década de
30, tendo como traço comum o fato de sempre conseguir elaborar um grande
acordo, incluindo a classe média comprada e submissa, contra as classes
populares, mantendo em poucas mãos o domínio das instituições e de todos os
recursos materiais e simbólicos necessários para a manutenção intacta de nossa
desigualdade. Qualquer semelhança com o cenário norte-americano descrito por
Wright Mills nos anos 50 não é, infelizmente, mera coincidência.
Diante disso, o que esperar
do Brasil em 2018? Escrevo este texto antes do julgamento de Lula, marcado para
o final de janeiro, provavelmente o capítulo final de nossa “House of cards”
tupiniquim. Se ele será condenado ou não, em certo sentido, não faz diferença
para esta reflexão. O legado de esquerda representado por ele, apesar de todas
as críticas positivas que sempre recebeu e a despeito de todas as críticas
negativas e desnecessárias, precisa sobreviver, independente do amor ou ódio
que tenhamos à sua figura. Não é o Lula quem realmente precisa vencer as
eleições, o que não significa que eu não deseje isso, mas sim o legado de
esquerda que por muito tempo ele representou. Assim como muita gente sensata,
não desejo sua condenação por razões que têm sido exaustivamente discutidas
entre nós. Sabemos que não é justa. Sabemos que é fruto da loucura das elites
descrita por Mills. Sabemos que é fruto do poder ilimitado adquirido por elas,
não apenas no Brasil, mas em todo o capitalismo. Sabemos que uma elite
internacional, dona do capital financeiro, ainda mais aperfeiçoada em seus
mecanismos de dominação do que aquela que Wright Mills viu em vida, dita hoje o
tom das coisas dentro da política nacional. Mas o que está em jogo aqui não é
apenas saber das coisas. Está em jogo algo mais importante, que é a manutenção
de um sentimento de esquerda. Tornou-se muito comum entre nós hoje a crítica
interna a esquerda, nem sempre bem intencionada. Não basta dizer onde erramos.
É preciso coragem para pensar, se posicionar com respeito a opiniões alheias e
simplesmente se assumir como de esquerda.
Não estou pensando aqui
simplesmente na unificação de partidos. Caso Lula não concorra, algum candidato
terá que herdar o seu lugar, de seu partido ou não, mas não deverá fazer isso
sozinho. Deverá representar, ao lado de milhões de pessoas de esquerda, muitas
delas sendo aquelas que foram às ruas desde 2013, um verdadeiro espírito de
esquerda. É este que poderá manter acesa a chama da esperança para a retomada
da reconstrução de nosso Estado democrático de direito e de bem-estar social.
Para grandes teóricos como T. Marshall e Robert Castel, em momentos distintos
da história, este foi o único caminho para a construção de sociedades
igualitárias, com exceção de experiências diretamente socialistas como a de
Cuba, um país pequeno, cuja história e complexidade não se podem comparar com a
brasileira.
O espírito de esquerda,
assim, independente do vulto de pessoas que formalmente o representam, precisa
prevalecer ao desespero e à adesão afetiva à triste figura de Bolsonaro. Mais
uma vez, não se trata de especificidade brasileira. Os teóricos da primeira
geração da escola de Frankfurt, como Adorno e Horkheimer, já se preocupavam com
a “personalidade autoritária”, cuja adesão, ao mesmo tempo afetiva,
“psicológica” e “racional”, interesseira, como brilhantemente explica adorno em
um pequeno texto chamado “Observações sobre política e neurose”, não explica
apenas a adesão a Hitler, mas também a Donald Trump nos dias de hoje e a muitos
outros na história. No Brasil, o machismo e a memória militarista são apenas um
tempero maligno neste tipo de “psicologia social das massas”, que expressa
muito mais uma impaciência política e uma ausência de reflexão do que a
sustentação de um projeto de nação para todos.
Se o espírito de esquerda
vai prevalecer, não sabemos. O fato é que este ano promete. A melhor postura,
diante de tudo, talvez seja a busca ainda mais profunda pela reflexão, pela
tolerância, pelo respeito e pelo convívio afetuoso. Sim, estas são virtudes
necessárias na esfera pública e na política. Inclusive, elas podem ser bons
temperos na construção de um espírito de esquerda. Uma boa consequência disso pode
ser uma decisão serena nas urnas. Que assim
seja!
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