Estamos
em pleno segundo turno, e as expectativas não são das melhores. A grande massa
da população, e especialmente as classes populares, está totalmente imersa no
mundo das fake News. A classe média, isolada em sua própria bolha de relações
sociais, bem como no Facebook, não tem ideia do que está acontecendo. O
principal fato que precisamos compreender, se ainda quisermos ter alguma
esperança sobre um Brasil melhor, é a construção do anti-petismo.
Este
sentimento que domina avassaladoramente a grande maioria da população
brasileira não é simplesmente uma crítica ao PT. Eu não sou nem nunca fui
filiado ao PT, logo não tenho interesse direto em sua defesa. Meu partido
sempre foi e sempre será a sociologia crítica de qualidade. É em nome dessa que
tento escrever. O sentimento anti-petista é, sobretudo, contra o Brasil e principalmente
contra os mais pobres. É uma construção que deve ser posta em grande medida na
conta da Rede Globo, mas não apenas. Desde a farsa do mensalão, que atribuiu ao
PT toda a corrupção intrínseca a todo o capitalismo é que a Globo, refletindo a
opinião e a vontade de boa parte de nossa elite, vem construindo
sistematicamente o anti-petismo anti-brasileiro. Todo mundo sabe que outros
políticos, com motivos muito mais evidentes, deveriam estar na condição que
Lula se encontra neste exato momento.
Depois
veio o Golpe etc etc. Não precisamos ser repetitivos aqui. O fato é que hoje
Bolsonaro nada de braçadas nesta construção ignorante que vai jogar o Brasil no
abismo. Não, não foram simplesmente erros do PT que nos jogaram nisso etc etc.
A conversa é bem mais complexa do que a discussão conjuntural sobre partidos,
que infelizmente tomou boa parte de nossas forças, nos dividindo entre a
candidatura do PT, único partido com capital político suficiente para enfrentar
Bolsonaro, e a candidatura de Ciro Gomes, que de repente vira “esquerda”, como
se tivesse um grande projeto nacional, como se isso fosse totalmente novo etc
etc. Inclusive, espero que agora fique claro quem é esse moço, tirando férias
na Europa enquanto o circo pega fogo. Grande ato de patriotismo. Postura
semelhante à de FHC e de muitos outros que, posando de centrão, surfando na
onda de não participar dos extremos, construídos pela Globo, Veja, Isto É etc,
não querem se comprometer com o que está prestes a acontecer e automaticamente
abrem mão do Brasil.
O
resultado de tudo isso é catastrófico. Bolsonaro é o único político carismático
que surge no Brasil depois de Lula, que seria o único capaz de enfrenta-lo.
Não, a culpa não é novamente do PT etc etc etc. O que está em jogo não é a autocrítica
que o PT deveria fazer, mesmo por que ela agora está sendo feita
estrategicamente por Haddad. O buraco é bem mais embaixo. Bolsonaro mobiliza
com maestria a moralidade do povo brasileiro da maneira mais maldosa possível.
Ele apela para a questão da violência exatamente por que nosso povo está
acuado, com medo, sofrendo as mazelas da generalização da precariedade do
capitalismo contemporâneo, que afeta principalmente os países periféricos. Eu
mesmo já fiz uma análise acadêmica deste tema. A questão da violência, distorcida
e minimizada, substitui a questão do enfrentamento da desigualdade, esta que
foi a chave moral com a qual Lula conseguiu conversar com a população. Nos dois
casos, o contexto global favorece a construção de uma linguagem política
nacional. Nós trocamos Obama e Lula por Trump e, espero estar errado, Jair
Bolsonaro. É trágico. Faltam forças para continuar escrevendo. Mas precisamos
retomar o fôlego e tentar compreender o que está acontecendo.
Todo
contexto político necessita de narrativas. A única narrativa política que se
construiu no Brasil desde que Lula foi eleito é o anti-petismo. Me apresente
outra se alguém a tiver. A tese de que a culpa é do próprio PT é muito frágil. Inclusive,
acho triste que colegas inteligentes se apeguem a esta tese. Todo partido ou
grupo político comete erros, revê estratégias, precisa compor com um bando de
crápulas sangue sugas sem os quais se não se governa em nenhuma democracia
moderna. A ciência política tem um nome para isso e se chama “governabilidade”.
Basta estudar um pouquinho para entender. Diante da colcha de retalhos que é o
cenário político de um país gigantesco como o Brasil, com interesses locais
diversos, com investimentos do capital financeiro mandando até o fundo de
nossas almas, considero muita tosqueira intelectual por a culpa em um partido e
nos seus erros. Não, é preciso compreender a estrutura da política brasileira,
sua relação com a estrutura social de nossa desigualdade, bem como o
entrelaçamento sistêmico entre tais estruturas e o capitalismo financeiro
globalizado. Não, não é tudo culpa do PT.
Diante
disso tudo, é preciso compreender o sentido profundo do anti-petismo. Ele é um
monólogo, uma narrativa única. Ele nos tirou todo o direito de fala, nos podou
do debate, se aproveitou de toda a nossa fragilidade social, que se resume em
um apartheid de classe. Não convivemos juntos enquanto classes sociais. Não
dialogamos. Sequer temos noção de como os mais pobres estão oprimidos. Observei
as pessoas na fila quando fui votar e a constatação é simples: elas não
aguentam mais. A precariedade no Brasil é tanta que uma grande parte da população
passa fome, é subnutrida, e outra grande parte está bem próxima disso. Este é o
Brasil pós Lula e pós PT. Ao mesmo tempo, a ciência social resumiu o debate ao
sistema político e à sua lógica intrínseca. Está errado. Simplesmente
esquecemos a sociedade. É dela que emana toda a angústia manipulada por
Bolsonaro.
Esta
parte me dá uma tristeza profunda. Está claro que os mais oprimidos e enganados
vão pagar esta conta, e vão pagar muito caro. Até o problema chegar na classe
média, preocupada se vamos perder nossos concursos etc, nós já moemos milhões
de pessoas, na máquina do capitalismo, como dizia Darcy Ribeiro. Sim, é uma
maquina de moer gente o sistema no qual vivemos, e figuras como Trump e
Bolsonaro apertam o botão “turbo” desta máquina, simples assim. Não há tempo
para ilusões. As declarações nacionalistas do capitão apenas omitem seu entreguismo.
A maldade de sua manipulação moral de nosso povo mais oprimido é tanta que
mobiliza aquilo que mais toca nas pessoas. Primeiro, a questão da segurança,
depois a da família. Aqui também precisamos parar e fazer uma análise.
A
linguagem pós-materialista, defensora dos direitos humanos, da liberdade
sexual, da tolerância racial e religiosa, tão importante para o avanço moral do
mundo, não diz absolutamente nada a grande massa das classes populares. E não,
não é por que as pessoas são burras. É por um fato muito simples. Estas pessoas
ainda estão imersas em suas preocupações materiais mais imediatas. Dai o fato
de a linguagem do combate a violência e do fortalecimento da família
estabelecer um elo inquebrantável entre o capitão e o povo. Sim, ele sabe muito
bem o que está fazendo. E nós, intelectuais, classe média, etc, ficamos dando
com os burros n’água, perdendo tempo decidindo entre PT e Ciro. Quem continua
incomodando é o PT. Do contrário, não existiria o monólogo da narrativa
anti-petista. Sim, é a única linguagem, a do capitão, que agora adestra com maestria
seu exército. A lógica do exército é obedecer, burocraticamente, sem
questionamento, roboticamente, sem reflexão, como no filme Tropa de Elite. É ir
pra guerra e confiar em seu capitão. A metáfora não poderia ser melhor e pena
que não é só metáfora, é a vida real da maioria da população brasileira que,
neste exato momento, cegamente, obedientemente, como um bom exército, confia em
seu capitão e em suas táticas. O capitão Nascimento, aquele da ficção, que foi
estimulado em todos nós pelo pseudo crítico filme Tropa de Elite, agora é real,
saiu das telinhas, deixou de ser brincadeira. Sim, nunca foi brincadeira. Não
se brinca com o sentimento das pessoas. Aliás, se brinca sim, e o capitão sabe
fazer isso muito bem. Como na guerra, todo mundo sabe que os soldados morrem
primeiro, põem seus corpos no front de batalha para proteger o capitão, que
monta suas táticas e vai muito bem, obrigado.
Entretanto,
uma diferença crucial entre a metáfora do exército e a situação atual do povo
brasileiro é que, de alguma forma, o soldado na guerra é motivado por valores e
sabe que pode morrer. Nosso povo está acreditando no contrário. Infelizmente,
países de modernidade periférica e profunda desigualdade estrutural como o
Brasil tendem a possuir um imaginário salvacionista em relação aos seus
políticos. Dai a raiva de Lula e o descrédito com ele, a decepção, por achar
que o presidente resolveria todos os problemas do mundo. Não, isso não é real.
Um presidente e seu partido, por mais de esquerda que seja, faz o que pode
diante de forças antagônicas que regem a sociedade, seus recursos materiais e
simbólicos. Não, nem o bem-intencionado Boulos salvaria o Brasil com uma penada,
por que isso não é real. É um mundo de fábulas. O mundo da vida real é regido
por forças em conflito, interesses distintos, e precisa lidar com eles. É
exatamente o que um candidato moderado poderia fazer neste exato momento, se o
povo não estivesse mais uma vez iludido com o nosso imaginário salvacionista,
maldosamente mobilizado pelo capitão. Não por acaso, as soluções dele são como
um passe de mágica. Um presidente de pulso forte vai combater o crime. Como o
capitão Nascimento, como a tropa de elite. Mas não, na política não é assim.
Como muito bem definiu o grande Michel Foucault, a política é a guerra por
outros meios. Logo, é preciso diálogo, manejo, reflexão, trânsito entre os
vários grupos políticos, ou seja, o que um candidato moderado poderia fazer.
Mas
seria pedir demais ao nosso povo para fazer esta reflexão. O povo perdeu a
paciência, e com toda a razão. Também seria um grande equívoco culpar o povo
por isso. Não, não é assim, e existe sim um culpado. A situação tem que ser
posta na conta da elite nacional, insensível, entreguista, antipatriota. E
também em grande medida na conta da parte da classe média bate-panela, que,
depois do povo, também vai pagar, aliás, de forma sadomasoquista já vem pagando
desde o golpe, que poupou apenas a elite.
Não,
isto não é senso comum do sociólogo chateado em seu desabafo. Não me apego ao
fetiche de teorias mega abstratas, tanto na economia quanto na sociologia. Me
apego aos autores que conseguiram me explicar com clareza o mundo no qual vivo,
como tento agora fazer neste texto. Dentre eles, o que mais me ensinou nos
últimos anos foi o norte-americano Wright Mills. Este grande pensador dedicou
um de seus grandes livros ao que definiu como a elite do poder. Em resumo, ele
percebeu, já nos Estados Unidos dos anos de 1950, que a elite são aquelas pessoas
que ocupam os principais postos nas principais instituições do Estado, do
mercado e, especialmente naquele momento, do exército. Atualizando para o
Brasil, precisamos incluir aqui a mídia e o campo jurídico. Por ocuparem tais
posições privilegiada de poder, estas pessoas tomam decisões que afetam todo o
restante da população. Como não tem limites em sua ação, se tornam pessoas
mimadas, narcísicas, sem caráter, salvo raras exceções que não se contaminam
pela moralidade ou melhor, pela imoralidade corrupta das altas rodas, como explicou
Wright Mills, que naturalizam o sistema, como fica claro em falas de vários
empresários enjaulados pela farsa da lava-jato. Não, não se trata apenas de um
partido. Uma leitura atenta do grande Wright Mills, que eu não teria espaço
para reproduzir aqui, deixa claro que não se trata de Brasil ou América Latina,
mas sim da natureza moderna de qualquer elite capitalista. Não, não é senso
comum, é a análise de um dos maiores sociólogos que o mundo já teve.
Por
fim, uma palavra de alento. Ainda não acabou, e temos alguma chance de virar
este jogo. É preciso diálogo com tolerância, sem agressões. Nenhum vínculo afetivo,
família ou amizade, deveria se esfacelar com o canto da sereia do capitão. É
preciso que conversemos com as pessoas, principalmente as indecisas, sobre o
projeto econômico obscuro do capitão. Não se trata apenas dos direitos das
relações homoafetivas, negros, mulheres e etc. O buraco é mais embaixo. O capitão
não gosta da classe trabalhadora. Como no Titanic, conduz o navio para a tragédia,
contendo a bordo apenas um bote salva vidas para a elite, enquanto a maioria
dos tripulantes segue inebriada com a música de fundo. O projeto obscuro,
escondido pelo apelo cruel aos sentimentos mais profundos do brasileiro envolve
um aprofundamento do governo Temer, a não reversão da reforma trabalhista, que
deixa o trabalhador totalmente vulnerável diante do patrão, uma reforma da
previdência que não beneficiará os trabalhadores, o aumento de facilidades para
os grandes grupos empresariais e também as privatizações, ainda que ele ande
confundindo a população quanto a este ponto.
Se
a história tomar mesmo o rumo que parece estar tomando, só nos restará a
resistência, inteligente, com música e poesia. Sim, muita poesia, arte, amor e
sensibilidade que parece ser o que está faltando neste mundo. Mas também com
atitudes políticas inteligentes, resistência tática, movimentos sociais que não
joguem a toalha diante de um mal maior que parece nos afligir. A reação terá
que vir do espírito, de dentro, do fundo da alma. A história, esta nossa grande
incógnita, parece nos enganar as vezes, mas ela mesma apresenta uma luz no fim
do túnel. Não dá pra achar que as forças progressistas ganharão sempre. Mas
também não podemos titubear e entregar-nos ao mal, sem resistência. Muita força
nesta hora, é o que desejo a todas as brasileiras e brasileiros. No fim, só
resta o pensamento livre. Haddad haver uma alternativa, para não Jair nos acostumando
com o que há de pior.