O último episódio no qual o presidente da república novamente diz que as preocupações com a pandemia são um "mimimi" é um dos principais reflexos da debilidade moral de nosso tempo. Algo que tem passado despercebido nas discussões atuais sobre a conjuntura brasileira é que Jair Bolsonaro, ao defender este tipo de discurso, tem atuado como o principal porta voz do novo capitalismo no Brasil.
Nos anos de 1990, a hoje clássica análise de Luc Boltanski e Eve Chiapello em seu livro "O novo espírito do capitalismo" se colocou como uma das principais interpretações do capitalismo contemporâneo. Seguindo a melhor tradição de clássicos como Weber e Sombart, os autores priorizaram a preocupação com o espírito do capitalismo, ou seja, todo o conjunto de ideias e ações que lhe atribuem significado em cada tempo histórico.
Usando o conceito de ideologia de Louis Dumont, eles percebem esta não como uma falsa consciência, no sentido marxista, mas sim como um conjunto de representações, referente às necessidades específicas de reprodução da dominação social em cada período específico do capitalismo. Tais representações precisam angariar corações e mentes das pessoas, de modo que o sistema possa continuar a existir em toda a sua perversidade, apesar de termos ampla consciência de sua desigualdade na esfera pública.
Com isso, o capitalismo atual, tematizado pelo livro como sendo perpassado pelo "terceiro espírito do capitalismo", não depende mais do discurso da ética protestante, como em seus primórdios, de acordo com a bela e clássica interpretação de Max Weber. Para os autores, o primeiro espírito do capitalismo é aquele do aventureiro, como tematizado por Weber e Sombart, e se remete aos primórdios do capitalismo moderno, nos séculos XVII e XVIII, que dependia da ideologia da disciplina protestante para sua sustentação moral. O segundo espírito é aquele que se conforma já no final do século XIX, com o surgimento das grandes corporações e a separação profissional entre propriedade e gerência, no qual a figura dos executivos e o papel social das empresas ganha proeminência.
No terceiro espírito, que se conforma a partir da década de 1970, o capitalismo precisa responder à inúmeras críticas sociais e estéticas, como belamente definem Boltanski e Chiapello, o que o leva a buscar esconder as figuras de autoridade e hierarquia. O executivo engravatado é agora substituído pela figura do líder camarada e despojado, que vai ajudar os seus colaboradores a vencerem juntos, no novo formato empresarial flexível que os autores definem como "cidades por projetos". Agora, basta você vestir a camisa da empresa, desenvolver uma personalidade flexível e pronto, a felicidade está acessível, com promessa de bons salários e consumo.
O que Jair Bolsonaro tem a ver com tudo isso? Neste cenário atual, o capitalismo precisa mais do que nunca engajar todas as classes sociais na reprodução de uma sociedade tão desigual e tão brutal. O contexto de crise estrutural global do capitalismo não é novo, e nos remete aos anos de 1970, o que é consenso para vários analistas sérios como Robert Castel, Ulrich Beck, Nancy Fraser, além de Boltanski e Chiapello e também economistas como Wolfgang Streeck e Thomas Piketty. Todos eles percebem no fim do Welfare state europeu e americano o início de um novo tempo de precarização global do capitalismo e que podemos também definir como o início de um processo irreversível de institucionalização da indignidade do trabalho. Desde então, o fosso entre a elite e as demais classes sociais, inclusive a classe média alta, tem aumentado em escala global.
Dentro deste cenário maior, a crise financeira de 2008 apenas aprofunda a situação, e especialmente nos países periféricos. No Brasil, a conta já chega no governo Dilma Rousseff, se aprofundando no segundo mandato e levada adiante com a perversa dobradinha Temer-Bolsonaro. Temos como resultado um golpe de estado e uma reforma trabalhista que apenas chancela todo este processo global e sua especificidade acelerada nos últimos anos no Brasil, criando o que eu sugiro definirmos como uma "dupla precariedade do trabalho", estrutural e conjuntural ao mesmo tempo, considerando nossa precariedade histórica e nosso cenário político atual perverso.
Com tudo isso, se voltarmos à fina teoria do capitalismo de Boltanski e Chiapello, compreenderemos que este novo capitalismo precisa de um porta voz que garanta os engajamentos, mesmo em cenário aparentemente injustificável sob qualquer ponto de vista. Quando Bolsonaro cria uma falsa oposição entre a vida econômica e a vida moral da população, ao priorizar a questão do trabalho (ficticiamente, é claro!) em detrimento da questão da saúde, ele está buscando exatamente o engajamento da grande maioria da população brasileira afundada no trabalho precário e indigno. Com isso, o presidente deixa de ser um chefe de estado e passa a ser um "relações públicas" do mercado. Nada mais do que isso. Essa é a verdadeira função de Jair Bolsonaro: engajar a população oprimida do Brasil em um sistema de trabalho global que está aumentando sua perversidade em velocidade preocupante.
Quando ele diz, por exemplo, que o brasileiro é corajoso ao ir pra rua trabalhar e não usar máscara, que o povo precisa trabalhar, que é uma gripezinha, etc, ele está perversamente, e vale aqui repetir com ênfase esta palavra, obrigando o povo a ir pra rua, de modo que o sistema não pare, pois este não pode abrir mão do trabalho braçal da massa, enquanto a classe média e a elite, especialmente agora na pandemia, continuam cada vez mais trancados em casa, no trabalho remoto e expostos à insanidade mental. Quando o relações públicas diz que a economia não pode parar, ele está sendo não o executivo do estado, mas o executivo do mercado. No passado o capataz usava um chicote, hoje, usa um smartphone. Não por acaso, o presidente é lider das redes sociais. Inclusive, o nível de instrumentalidade do sistema e tanto, que o próprio presidente, como pessoa, é um objeto, exposto sem máscara às multidões e representando todo o negacionismo perfeitamente encarnado em sua própria imagem.
Como solução, precisamos ter alguma esperança para 2022. Alguns cenários já se esboçam em pesquisas recentes, mas ainda vagos e não muito promissores. A população como um todo, e especialmente os mais pobres, precisa urgentemente entender que Bolsonaro é seu grande inimigo. A esquerda precisa por o pé no chão e definir uma candidatura forte imediatamente, ou será (talvez já seja?) novamente tarde demais. A bolha universitária e de classe média precisa parar de perder tempo com picuinhas identitárias a là Big Brother e ser vanguarda na construção de um imaginário democrático e realmente tolerante. Com tudo isso, talvez tenhamos alguma chance de construir um cenário melhor ali na frente. Talvez tenhamos alguma pequena chance.
Fabrício Maciel é professor de teoria sociológica do departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos, do PPG em Sociologia Política da UENF e bolsista de produtividade do CNPq.