Aldous Huxley e George Orwell haviam profetizado: eles vêm atrás de nós. Chegará um tempo no qual não teremos nenhuma privacidade. Este tempo chegou. Michel Foucault definiu esta realidade como um "panóptico", no qual todos somos vigiados. Na semana passada, eu e um amigo sofremos um ataque virtual, de pessoas mal intencionadas, em uma live sobre meu livro "O Brasil-nação como ideologia" (Rio de Janeiro: Autografia, 2020, 2ª edição). Passados alguns dias, resolvi não ficar calado. Não vou simplesmente aceitar a falta de respeito que sofremos.
O que faço da minha vida? Sou professor universitário. Eu estudo para compreender o mundo. Dedico todo o meu tempo para tentar construir um mundo melhor. Não tenho tempo para vigiar a vida alheia, como fizeram meus invasores. Fico me perguntando sobre a condição existencial destas pessoas. Sabemos o que está acontecendo no mundo e especialmente no Brasil. Está instalado o gabinete do ódio, cuja tarefa diária é construir uma versão totalmente distorcida de mundo e perseguir pessoas ditas de esquerda ou progressistas.
Independente destes rótulos, a proposta do meu livro é pensar o Brasil a partir de uma revisão de sua história. Para isso, precisamos sair das ilusões da conjuntura para compreender como chegamos até aqui. O projeto iluminista deu errado e o mundo está absorto em trevas. O que leva uma pessoa comum a se tornar uma peça descartável neste xadrez, invadindo lives de professores universitários?
Poderíamos culpar a desigualdade e dizer que são vítimas, pessoas sofrendo etc. Mas acho que é um pouco mais do que isso. A maldade humana pode ter a ver com diversas razões. Falta de atitude em querer viver melhor, por exemplo. Mas também pode significar falta de sentido na vida. Até quando vamos aceitar estes ataques, já corriqueiros? Já temos relatos do Brasil inteiro. Não vou deixar de fazer o que sempre fiz, pois este é o sentido da minha vida. Acho que as universidades precisam seriamente se posicionar, institucionalmente. Estamos sendo vítimas de uma guerra doentia montada por pessoas que sabem muito bem o que estão fazendo. Não dá para deixar passar em branco.
Estamos vivendo sob uma ditadura tecnológica, e o principal problema é que já a naturalizamos. Ela transcende o problema grave do covid, que nos assola profundamente neste momento. Em minha tese de doutorado, publicada como livro sob o título "A nova sociedade mundial do trabalho: para além de centro e periferia?" (São Paulo: Annablume, 2014), estudei as profundas transformações do capitalismo global desde a década de 1970. Um dos aspectos centrais desta discussão é a transformação do capitalismo em uma "sociedade do conhecimento".
André Gorz, um dos principais autores desta tese, definiu o problema com bastante propriedade: a principal força produtiva e estruturante das sociedades atuais é o conhecimento tecnológico, dominado por poucos. Este é colocado a serviço da elite global para construir uma nova forma de dominação. Sem a tecnologia utilizada pelo poder da classe dominante global não teríamos hoje o novo fenômeno da indignidade: a uberização do trabalho. O patrão é invisível, difícil de se caracterizar como tal e de se processar juridicamente, como temos visto em alguns casos já no Brasil. Cada qual que pague com seu próprio corpo e o covid-19 chega para levar a cabo o trabalho de abandono e matança coletiva. Os entregadores todos os dias na porta de nossas casas estão neste front de batalha, além das mulheres protagonistas de diversas profissões da saúde, expostas ao risco neste momento.
O poder profundo da tecnologia sobre nossas vidas chegou a seu ápice. Hoje somos vítimas de cinco ou seis empresas globais que têm acesso a todos os nossos dados e podem mapear em cinco minuto tudo sobre nossas vidas. Com isso, não são apenas as pessoas "de esquerda" ou "progressistas" que estão expostas. Todos nós estamos. A nova dominação político-tecnológica, que esconde o mercado dos ricos por trás dela, chegou ao limite de poder ilimitado que elege quem quiser.
Para saber mais, sugiro o documentário "privacidade hackeada" (direção de Jeane Noujaim e Karim Amer, netflix, 2019). Nele é mostrada a ação da empresa Cambridge Analytica e como ela foi decisiva na eleição de Trump e no problema do Brexit na Europa. A mesma lógica foi aplicada na eleição de Jair Bolsonaro. Entretanto, a história possui linhas tortas e este momento pode passar logo. Há grandes chances de que Trump não se reeleja nos Estados Unidos. Ou seja, o sentido que parece estar tomando a história neste momento pode mudar ali na frente e pegar muita gente de surpresa.
Quanto aos soldados da guerra virtual, os generais não morrerão junto com eles. Esta é uma guerra apenas aparentemente coletiva, na qual as principais peças do Xadrez conseguem facilmente mobilizar pessoas com pouca auto-estima para brincar de bater continência a líderes que não estão nem ai para elas. Trágica existência. A leitura de um Olavo de Carvalho pode trazer algum conforto, pois no fundo oferece um reconhecimento fake para aqueles que encontraram pouco sentido na vida. Tudo pode ser relativizado: a cloroquina pode salvar dos efeitos do covid-19 e a terra pode não ser redonda. A única coisa que não se relativiza é a condição de soldado em uma gerra: nunca será reconhecido pelo seu mestre, seja ele quem for.
Enquanto os soldados fazem o trabalho braçal de invadir lives, colocando sua inteligência gratuitamente em favor de uma guerra particular, de seus mestres, estes nunca se expõem no front de batalha. Estão escondidos em suas mansões provando vinhos e carnes que seus leais soldados jamais provarão. Isso poderia ser uma razão para a reflexão. Talvez ajudasse na busca por um sentido mais profundo na vida.