segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O QUE É O ANTI-PETISMO?



Estamos em pleno segundo turno, e as expectativas não são das melhores. A grande massa da população, e especialmente as classes populares, está totalmente imersa no mundo das fake News. A classe média, isolada em sua própria bolha de relações sociais, bem como no Facebook, não tem ideia do que está acontecendo. O principal fato que precisamos compreender, se ainda quisermos ter alguma esperança sobre um Brasil melhor, é a construção do anti-petismo.

Este sentimento que domina avassaladoramente a grande maioria da população brasileira não é simplesmente uma crítica ao PT. Eu não sou nem nunca fui filiado ao PT, logo não tenho interesse direto em sua defesa. Meu partido sempre foi e sempre será a sociologia crítica de qualidade. É em nome dessa que tento escrever. O sentimento anti-petista é, sobretudo, contra o Brasil e principalmente contra os mais pobres. É uma construção que deve ser posta em grande medida na conta da Rede Globo, mas não apenas. Desde a farsa do mensalão, que atribuiu ao PT toda a corrupção intrínseca a todo o capitalismo é que a Globo, refletindo a opinião e a vontade de boa parte de nossa elite, vem construindo sistematicamente o anti-petismo anti-brasileiro. Todo mundo sabe que outros políticos, com motivos muito mais evidentes, deveriam estar na condição que Lula se encontra neste exato momento.  

Depois veio o Golpe etc etc. Não precisamos ser repetitivos aqui. O fato é que hoje Bolsonaro nada de braçadas nesta construção ignorante que vai jogar o Brasil no abismo. Não, não foram simplesmente erros do PT que nos jogaram nisso etc etc. A conversa é bem mais complexa do que a discussão conjuntural sobre partidos, que infelizmente tomou boa parte de nossas forças, nos dividindo entre a candidatura do PT, único partido com capital político suficiente para enfrentar Bolsonaro, e a candidatura de Ciro Gomes, que de repente vira “esquerda”, como se tivesse um grande projeto nacional, como se isso fosse totalmente novo etc etc. Inclusive, espero que agora fique claro quem é esse moço, tirando férias na Europa enquanto o circo pega fogo. Grande ato de patriotismo. Postura semelhante à de FHC e de muitos outros que, posando de centrão, surfando na onda de não participar dos extremos, construídos pela Globo, Veja, Isto É etc, não querem se comprometer com o que está prestes a acontecer e automaticamente abrem mão do Brasil.

O resultado de tudo isso é catastrófico. Bolsonaro é o único político carismático que surge no Brasil depois de Lula, que seria o único capaz de enfrenta-lo. Não, a culpa não é novamente do PT etc etc etc. O que está em jogo não é a autocrítica que o PT deveria fazer, mesmo por que ela agora está sendo feita estrategicamente por Haddad. O buraco é bem mais embaixo. Bolsonaro mobiliza com maestria a moralidade do povo brasileiro da maneira mais maldosa possível. Ele apela para a questão da violência exatamente por que nosso povo está acuado, com medo, sofrendo as mazelas da generalização da precariedade do capitalismo contemporâneo, que afeta principalmente os países periféricos. Eu mesmo já fiz uma análise acadêmica deste tema. A questão da violência, distorcida e minimizada, substitui a questão do enfrentamento da desigualdade, esta que foi a chave moral com a qual Lula conseguiu conversar com a população. Nos dois casos, o contexto global favorece a construção de uma linguagem política nacional. Nós trocamos Obama e Lula por Trump e, espero estar errado, Jair Bolsonaro. É trágico. Faltam forças para continuar escrevendo. Mas precisamos retomar o fôlego e tentar compreender o que está acontecendo.

Todo contexto político necessita de narrativas. A única narrativa política que se construiu no Brasil desde que Lula foi eleito é o anti-petismo. Me apresente outra se alguém a tiver. A tese de que a culpa é do próprio PT é muito frágil. Inclusive, acho triste que colegas inteligentes se apeguem a esta tese. Todo partido ou grupo político comete erros, revê estratégias, precisa compor com um bando de crápulas sangue sugas sem os quais se não se governa em nenhuma democracia moderna. A ciência política tem um nome para isso e se chama “governabilidade”. Basta estudar um pouquinho para entender. Diante da colcha de retalhos que é o cenário político de um país gigantesco como o Brasil, com interesses locais diversos, com investimentos do capital financeiro mandando até o fundo de nossas almas, considero muita tosqueira intelectual por a culpa em um partido e nos seus erros. Não, é preciso compreender a estrutura da política brasileira, sua relação com a estrutura social de nossa desigualdade, bem como o entrelaçamento sistêmico entre tais estruturas e o capitalismo financeiro globalizado. Não, não é tudo culpa do PT.

Diante disso tudo, é preciso compreender o sentido profundo do anti-petismo. Ele é um monólogo, uma narrativa única. Ele nos tirou todo o direito de fala, nos podou do debate, se aproveitou de toda a nossa fragilidade social, que se resume em um apartheid de classe. Não convivemos juntos enquanto classes sociais. Não dialogamos. Sequer temos noção de como os mais pobres estão oprimidos. Observei as pessoas na fila quando fui votar e a constatação é simples: elas não aguentam mais. A precariedade no Brasil é tanta que uma grande parte da população passa fome, é subnutrida, e outra grande parte está bem próxima disso. Este é o Brasil pós Lula e pós PT. Ao mesmo tempo, a ciência social resumiu o debate ao sistema político e à sua lógica intrínseca. Está errado. Simplesmente esquecemos a sociedade. É dela que emana toda a angústia manipulada por Bolsonaro.

Esta parte me dá uma tristeza profunda. Está claro que os mais oprimidos e enganados vão pagar esta conta, e vão pagar muito caro. Até o problema chegar na classe média, preocupada se vamos perder nossos concursos etc, nós já moemos milhões de pessoas, na máquina do capitalismo, como dizia Darcy Ribeiro. Sim, é uma maquina de moer gente o sistema no qual vivemos, e figuras como Trump e Bolsonaro apertam o botão “turbo” desta máquina, simples assim. Não há tempo para ilusões. As declarações nacionalistas do capitão apenas omitem seu entreguismo. A maldade de sua manipulação moral de nosso povo mais oprimido é tanta que mobiliza aquilo que mais toca nas pessoas. Primeiro, a questão da segurança, depois a da família. Aqui também precisamos parar e fazer uma análise.
A linguagem pós-materialista, defensora dos direitos humanos, da liberdade sexual, da tolerância racial e religiosa, tão importante para o avanço moral do mundo, não diz absolutamente nada a grande massa das classes populares. E não, não é por que as pessoas são burras. É por um fato muito simples. Estas pessoas ainda estão imersas em suas preocupações materiais mais imediatas. Dai o fato de a linguagem do combate a violência e do fortalecimento da família estabelecer um elo inquebrantável entre o capitão e o povo. Sim, ele sabe muito bem o que está fazendo. E nós, intelectuais, classe média, etc, ficamos dando com os burros n’água, perdendo tempo decidindo entre PT e Ciro. Quem continua incomodando é o PT. Do contrário, não existiria o monólogo da narrativa anti-petista. Sim, é a única linguagem, a do capitão, que agora adestra com maestria seu exército. A lógica do exército é obedecer, burocraticamente, sem questionamento, roboticamente, sem reflexão, como no filme Tropa de Elite. É ir pra guerra e confiar em seu capitão. A metáfora não poderia ser melhor e pena que não é só metáfora, é a vida real da maioria da população brasileira que, neste exato momento, cegamente, obedientemente, como um bom exército, confia em seu capitão e em suas táticas. O capitão Nascimento, aquele da ficção, que foi estimulado em todos nós pelo pseudo crítico filme Tropa de Elite, agora é real, saiu das telinhas, deixou de ser brincadeira. Sim, nunca foi brincadeira. Não se brinca com o sentimento das pessoas. Aliás, se brinca sim, e o capitão sabe fazer isso muito bem. Como na guerra, todo mundo sabe que os soldados morrem primeiro, põem seus corpos no front de batalha para proteger o capitão, que monta suas táticas e vai muito bem, obrigado.

Entretanto, uma diferença crucial entre a metáfora do exército e a situação atual do povo brasileiro é que, de alguma forma, o soldado na guerra é motivado por valores e sabe que pode morrer. Nosso povo está acreditando no contrário. Infelizmente, países de modernidade periférica e profunda desigualdade estrutural como o Brasil tendem a possuir um imaginário salvacionista em relação aos seus políticos. Dai a raiva de Lula e o descrédito com ele, a decepção, por achar que o presidente resolveria todos os problemas do mundo. Não, isso não é real. Um presidente e seu partido, por mais de esquerda que seja, faz o que pode diante de forças antagônicas que regem a sociedade, seus recursos materiais e simbólicos. Não, nem o bem-intencionado Boulos salvaria o Brasil com uma penada, por que isso não é real. É um mundo de fábulas. O mundo da vida real é regido por forças em conflito, interesses distintos, e precisa lidar com eles. É exatamente o que um candidato moderado poderia fazer neste exato momento, se o povo não estivesse mais uma vez iludido com o nosso imaginário salvacionista, maldosamente mobilizado pelo capitão. Não por acaso, as soluções dele são como um passe de mágica. Um presidente de pulso forte vai combater o crime. Como o capitão Nascimento, como a tropa de elite. Mas não, na política não é assim. Como muito bem definiu o grande Michel Foucault, a política é a guerra por outros meios. Logo, é preciso diálogo, manejo, reflexão, trânsito entre os vários grupos políticos, ou seja, o que um candidato moderado poderia fazer.

Mas seria pedir demais ao nosso povo para fazer esta reflexão. O povo perdeu a paciência, e com toda a razão. Também seria um grande equívoco culpar o povo por isso. Não, não é assim, e existe sim um culpado. A situação tem que ser posta na conta da elite nacional, insensível, entreguista, antipatriota. E também em grande medida na conta da parte da classe média bate-panela, que, depois do povo, também vai pagar, aliás, de forma sadomasoquista já vem pagando desde o golpe, que poupou apenas a elite.
Não, isto não é senso comum do sociólogo chateado em seu desabafo. Não me apego ao fetiche de teorias mega abstratas, tanto na economia quanto na sociologia. Me apego aos autores que conseguiram me explicar com clareza o mundo no qual vivo, como tento agora fazer neste texto. Dentre eles, o que mais me ensinou nos últimos anos foi o norte-americano Wright Mills. Este grande pensador dedicou um de seus grandes livros ao que definiu como a elite do poder. Em resumo, ele percebeu, já nos Estados Unidos dos anos de 1950, que a elite são aquelas pessoas que ocupam os principais postos nas principais instituições do Estado, do mercado e, especialmente naquele momento, do exército. Atualizando para o Brasil, precisamos incluir aqui a mídia e o campo jurídico. Por ocuparem tais posições privilegiada de poder, estas pessoas tomam decisões que afetam todo o restante da população. Como não tem limites em sua ação, se tornam pessoas mimadas, narcísicas, sem caráter, salvo raras exceções que não se contaminam pela moralidade ou melhor, pela imoralidade corrupta das altas rodas, como explicou Wright Mills, que naturalizam o sistema, como fica claro em falas de vários empresários enjaulados pela farsa da lava-jato. Não, não se trata apenas de um partido. Uma leitura atenta do grande Wright Mills, que eu não teria espaço para reproduzir aqui, deixa claro que não se trata de Brasil ou América Latina, mas sim da natureza moderna de qualquer elite capitalista. Não, não é senso comum, é a análise de um dos maiores sociólogos que o mundo já teve.

Por fim, uma palavra de alento. Ainda não acabou, e temos alguma chance de virar este jogo. É preciso diálogo com tolerância, sem agressões. Nenhum vínculo afetivo, família ou amizade, deveria se esfacelar com o canto da sereia do capitão. É preciso que conversemos com as pessoas, principalmente as indecisas, sobre o projeto econômico obscuro do capitão. Não se trata apenas dos direitos das relações homoafetivas, negros, mulheres e etc. O buraco é mais embaixo. O capitão não gosta da classe trabalhadora. Como no Titanic, conduz o navio para a tragédia, contendo a bordo apenas um bote salva vidas para a elite, enquanto a maioria dos tripulantes segue inebriada com a música de fundo. O projeto obscuro, escondido pelo apelo cruel aos sentimentos mais profundos do brasileiro envolve um aprofundamento do governo Temer, a não reversão da reforma trabalhista, que deixa o trabalhador totalmente vulnerável diante do patrão, uma reforma da previdência que não beneficiará os trabalhadores, o aumento de facilidades para os grandes grupos empresariais e também as privatizações, ainda que ele ande confundindo a população quanto a este ponto.

Se a história tomar mesmo o rumo que parece estar tomando, só nos restará a resistência, inteligente, com música e poesia. Sim, muita poesia, arte, amor e sensibilidade que parece ser o que está faltando neste mundo. Mas também com atitudes políticas inteligentes, resistência tática, movimentos sociais que não joguem a toalha diante de um mal maior que parece nos afligir. A reação terá que vir do espírito, de dentro, do fundo da alma. A história, esta nossa grande incógnita, parece nos enganar as vezes, mas ela mesma apresenta uma luz no fim do túnel. Não dá pra achar que as forças progressistas ganharão sempre. Mas também não podemos titubear e entregar-nos ao mal, sem resistência. Muita força nesta hora, é o que desejo a todas as brasileiras e brasileiros. No fim, só resta o pensamento livre. Haddad haver uma alternativa, para não Jair nos acostumando com o que há de pior.