A
série “O mecanismo”, de José Padilha, que está bombando na Netflix, é um
perfeito exemplo de como se distorce sistematicamente a verdade sobre o Brasil,
tanto na academia quanto na arte, operando-se uma perfeita divisão do trabalho.
Vou reconstruir um breve histórico deste conhecido cineasta, para que possamos
entender o que esta série realmente representa.
Desde
o seu documentário “Ônibus 174” (2002), sobre o conhecido episódio envolvendo o
garoto de rua protagonista da tragédia, que Padilha não me convence. Quem
quiser ter acesso a uma análise realmente crítica deste episódio pode assistir
ao filme “Última parada 174” (2008), de Bruno Barreto que, apesar de ser uma
ficção, e não um documentário, como fez Padilha, tematiza de fato o que
aconteceu na história de vida do menino Sandro. Primeira lição a se aprender:
nem sempre um documentário é crítico.
Neste
belíssimo filme, Bruno Barreto deixa claro, com fineza sociológica rara, as
razões que levaram o menino Sandro a se tornar um adulto tolo e protagonizar a
tragédia do referido ônibus. Não recontarei a história, pois é bem conhecida. A
análise do filme, baseado em fatos reais, mostra com clareza a história de vida
do menino: sua mãe, uma batalhadora dona de um bar na comunidade em que
moravam, é assassinada brutalmente durante um assalto em sua presença. O menino
começa a vagar, não pára na casa de nenhum parente e, sem destino, enlouquece e
vai morar nas ruas do Rio de Janeiro. Paralelamente, o filme mostra a vida de
um outro menino Sandro, da mesma idade que, criado por um traficante,
desenvolve todas as disposições e a inteligência necessária para o crime.
Contrário a ele, o Sandro do ônibus se torna um garoto de rua que é
essencialmente um tolo. Esta é a moral da história: um garoto de rua não tem
metade da sagacidade de um traficante, e o seu destino é ficar vagando e
cometendo pequenos delitos no centro da cidade. Ou seja: o garoto de rua é um
exemplo perfeito do que o abandono social pode causar a uma pessoa. Quando esta
pessoa comete algum delito que afeta a “boa sociedade”, logo ficamos
apavorados.
Moral
da história: é assim que se usa a arte para se tematizar criticamente as razões
dos problemas sociais. É preciso que se mostre claramente, sem ambiguidades e
floreios, a origem real dos problemas, como faz o filme. É preciso que se tenha
uma didática clara e direta para o público. Esta certamente não é a marca de
Padilha. Já no primeiro “Tropa de Elite”, baseado em livro de relatos escrito
por Luiz Eduardo Soares e parceiros, ele deixa ainda mais claro a que veio. A
trama do filme é simples: apenas uma tropa muito bem treinada para uma guerra,
com razões morais que motivam seus membros a darem sua vida pela causa, pode
enfrentar o crime no Brasil. A velha tese acadêmica de que a desigualdade no
Brasil é uma questão de polícia não podia ser melhor requentada e apresentada
ao público como distração.
Em
resumo, a questão central do filme, reforçada por sua estética, é que uma tropa
de homens bons e honestos vai enfrentar o crime para salvar a boa sociedade. O
sentimento mobilizado pela estética do filme é a vontade de ver o crime
exterminado a qualquer custo. Por isso não é crítico. A arte tem o poder de
mobilizar imediatamente os corações das pessoas. Por isso, deve ir direto ao
ponto. Em nenhum momento o filme questiona o fato central de nossa desigualdade,
que tem a ver diretamente com a violência no Brasil: o fato de que homens
moralmente desqualificados e excluídos de outras possibilidades de trabalho
distinto vão encontrar no batalhão sua única chance de receber algum prestígio
e status. Para tanto, o preço é matar muitas vezes um primo ou irmão, do outro
lado do front da batalha (há relatos verídicos sobre isso), para com isso
defender a classe média e a elite da violência mais imediata do cotidiano.
Novamente,
fica a sugestão: para quem quiser ver um filme realmente crítico sobre o drama
da guerra e de como ela destrói a alma dos envolvidos, basta ver o belíssimo
“Nascido para matar” de Stanley Kubrik. Este sim, tematiza como o treinamento
indigno, apenas caricaturado no Tropa de elite que “mostra”, mas não “analisa”,
mobiliza os sentimentos e valores dos envolvidos. No filme, um dos soldados,
que não tinha preparo físico e emocional para o treinamento, como muitos não
tem, acaba se apaixonando pela própria arma, e no final aniquila seu treinador,
que era seu algoz.
No
Tropa de Elite 2, nosso querido cineasta vai ainda mais longe. Como o próprio
sub-título do filme sugere, “O inimigo agora é outro”. O já consagrado herói
nacional, Capitão Nascimento, agora “cai para cima” e vai trabalhar na
inteligência do combate ao crime. Descobre logo de cara o “sistema”. Moral da
história: a polícia deve combater a política. Uma análise que fiz na época
sobre o Tropa 2 pode ser lida aqui: http://eduem.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/11629/6704.
Mais
uma vez, o filme tem uma onda crítica. Aqui não podemos confundir o uso dos
fatos com a capacidade crítica da arte, pois é exatamente o que ocorre agora no
“Mecanismo”. Não por acaso, o Tropa 2 é lançado em pleno início de segundo
turno das eleições para presidência, em 2010, na qual Dilma venceu Serra. Um
dado ingênuo: a última cena do Tropa 2 é uma imagem sobrevoando o palácio do
planalto. O tema do filme, adivinhem: combate a corrupção, que neste caso é só
no Estado.
Por
fim, temos agora o “Tropa de Elite 3”, pois não se trata de outra coisa esta
série “O Mecanismo”. O inimigo continua o mesmo: a política em si e todos os
políticos, pois todos são corruptos. Este é o discurso adotado pelo diretor.
Não por acaso, a série se atualiza em alguns aspectos: agora o problema do
Brasil é mais complexo e apenas a casta jurídica, isenta, pode enfrentar a
corrupção, “nosso câncer”, como é enfatizado na série. A estética é a mesma: o
combate ao crime organizado, de colarinho branco. A polícia, mais inteligente,
preparada, séria e isenta: a federal. Temos alguma esperança: algumas pessoas
de bem ainda acreditam na guerra contra os criminosos. Falta apenas falar de um
detalhe nesta história toda: a política corrupta é apenas a ponta do iceberg de
um “sistema” um pouquinho maior...Só não posso garantir ao leitor que uma série
realmente crítica sobre ele passará na Netflix.